Uma Árvore, nunca é só uma Árvore

   

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No sábado, dinamizei o primeiro encontro catártico, onde explorámos várias formas de libertar emoções. Um dos exercícios foi escrever um conto. A sensação de estarem oito pessoas na mesma sala a escrever é brutalmente inspiradora.

Este foi o conto que me surgiu. Nas últimas semanas, a minha cabeça tem repousado numa música de Rui Veloso e sem que premeditasse, estava a escrever com Rui na ponta da caneta.

Aqui fica o conto.

Havia um pessegueiro, já dizia Rui Veloso e o Sr. Ramiro confirmava-o. O pessegueiro era frondoso, o tronco largo lembrava a sua longevidade. A sua presença trazia uma certa leveza aquele pedaço rochoso, no meio do mar.

Ultimamente ouvia-se, pelos cantos das casas caiadas, que eram muitos os que lhe queriam dar um golpe, uma daquelas machadadas profundas que nos entorpecem os sentidos e nos fazem esquecer do que é estar vivo.

Sr. Ramiro, tinha um ar vagaroso, como se o equilíbrio da terra dependesse dele. Usava a boina que havia sido do seu pai, a mão direita segurava um cajado forjado pelas seus calos outrora jovens. As suas pernas curtas, ainda faziam caminhos longos. Um dos seus favoritos era até à ponta da praia, de onde se avistava a ilha.

Conseguia perceber que o pessegueiro estava mais fraco, parecia que alguma doença tinha subido raízes acima. Os ramos estavam mais secos e o tronco mirrado.

Sr. Ramiro, sentia-se consumido só de pensar que iam cortar aquela árvore. Como se estar doente fosse uma maldição incapaz de ser acolhida. Sr. Ramiro aprendeu a arte da contemplação com aquele pessegueiro.

O pessegueiro cresceu ao sabor do vento que desafiava a sua orientação a sul. Diziam que era uma árvore especial. A primeira vez que deu pêssegos, juntou toda a gente da aldeia, assomados nos seus pequenos barquinhos ao redor da ilha. Conta a lenda que ninguém colheu um pêssego que fosse, que se detiveram perante tamanha beleza. Cada pêssego tinham um tom que fazia lembrar um pôr-do-sol que maturou a árvore.

E agora? Agora iam tirá-lo dali à força, como se fazem às crias de gato. Como se a vida não pertencesse a quem a vive.

Sr. Ramiro sabia de histórias de pessoas que se amarravam a árvores, mas a sua idade já não lhe dava forças para o fazer. As suas mãos já eram trémulas e a sua voz já quase não se ouvia.

Nos dias seguintes, adormeceu de cansaço, vasculhando os rascunhos mentais à procura de soluções.

Foi então que se lembrou de Rui, o tal rapaz fininho que andava sempre com tretas na algibeira, que tinha a força para atravessar um rio e se atrevia em lados lunares.

Se ao menos o Sr. Ramiro tivesse o pombo do pátio das cantigas, que fizesse tal recado chegar ao Porto…

Apesar do seu passo curto, Sr. Ramiro sabia um caminho de olhos fechados, e se saísse de madrugada, chegaria à hora certa da emissão da rádio local.

O manto de nevoeiro serviu-lhe de agasalho e o luar guiou-lhe os pés. Entrou confiante, redação adentro.

– Tenho um recado. Deixem-me falar na emissão. – disse com a voz embargada.

– Sr. Ramiro, não pode entrar aqui. Sabe a estima que lhe temos, mas hoje não pode falar.

– André, quem é que ajudou o teu avô a fundar esta rádio?

– Foi o Sr.

– Alguma vez te pedi o que quer que fosse?

– Não, Sr. Ramiro.

– Honra-lhe a memória, meu rapaz. A rádio é para servir as suas pessoas.

André assentiu e daí a uns minutos, fez sinal a Sr. Ramiro para entrar e se sentar em frente ao microfone.

Sr. Ramiro pigarreou, para que fosse o mais claro possível.

“Bom dia ouvintes, vou ser breve. Daqui fala Ramiro, o vizinho de Odemira. O pessegueiro precisa de um fim digno. Avisem o Rui, que lhe querem matar a canção!!”

As notícias correram depressa e não tardou até que se fizessem manchetes a anunciar que iam destruir um símbolo nacional!

No dia seguinte, o telefone da rádio toca, com o pedido de alguém que queria entrar em direto para deixar um recado:

– O que é preciso fazer para salvar o pessegueiro? Vender o meu anel de rubi?

Perante tal mediatismo, o presidente da junta não teve outro remédio a não ser, olhar com a devida atenção para a mítica árvore.

Vieram especialistas de pessegueiros de todas as partes do País. Afinal havia forma de o salvar, com um conta-gotas de paixão. Porque se a morte é certa, o dia da sua chegada não deve pertencer aos Humanos, mas sim aos Deuses.

Respostas de 2 a “Uma Árvore, nunca é só uma Árvore”

  1. Avatar de estevamweb
    estevamweb

    Sempre tem alguém querendo dar golpes…

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    1. Avatar de Raquel Santos
      Raquel Santos

      Verdade!

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